Rezadeiras: cada vez mais raras, resistem e lutam por tradição
Preconceito desencorajam os mais jovens
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Prática trazida pelos escravizados e popularizada através dos tempos, a cura pela fé vem perdendo espaço.
Ramos de ervas como arruda e alecrim, ou objetos como medalhas e crucifixos, às vezes acompanhados de um copo de água benta, são instrumentos poderosos nas mãos de uma rezadeira. Segundo a fé popular, podem ajudar a curar doenças do corpo e da alma — que vão de quebranto, espinhela caída e mau-olhado a males mais comuns nos dias atuais, como a depressão. Entretanto, a tradição, que é bastante antiga e costuma ser transmitida oralmente de uma geração para outra, corre o risco de se perder.
Em um período como este, quando as pessoas procuram um alívio espiritual para começar bem o Ano Novo, encontrar uma rezadeira ou benzedeira na cidade não é tarefa das mais fáceis. Isso porque muitas já morreram e não deixaram herdeiras. Até no subúrbio, onde essa prática sempre foi mais comum, atualmente não é tão fácil achar rezadeira ou rezador. Isso mesmo. Também há homens praticando a reza, embora em menor número.
Uma dessas remanescentes vive em Vargem Grande, na Zona Oeste. De origem católica, Maria Lúcia Mesquita Martins, de 62 anos, conhecida no lugar apenas como Dona Maria, é representante da terceira geração de rezadeiras da família, mas começou a rezar somente depois de adulta. Primeiro, em casa, com os filhos e netos, até que a fama de que tinha esse dom se espalhou na comunidade.
—Hoje é muita gente que vem até mim para benzer. Minha avó benzia tudo, inclusive ventre caído das criancinhas. Eu também comecei a fazer esse trabalho e recebo visitas de gente de bairros como Pedra de Guaratiba, Taquara e Recreio, onde a cada 15 dias faço benzimento numa casa espiritualista — conta Dona Maria, que também faz remédios, xaropes e pomadas com ervas que colhe no quintal e sonha transmitir seus ensinamentos a um casal de netos, com 5 e 9 anos, que já demonstraram interesse e o dom.
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Mudança de público
Como é comum nesse meio, ela não cobra pela reza. Mas doações ou outro tipo de ajuda que não seja financeira são bem-vindas. O cômodo onde Dona Maria recebe as pessoas que vão à procura de cura para suas aflições fica na frente da casa. O local é simples, com um altar e algumas imagens de santos. Numa das paredes internas está a foto de Dona Astrogilda, a avó com quem aprendeu os ensinamentos da reza. Na fachada há uma pintura de São Francisco de Assis e muitos pássaros.
Foi nesse espaço que a rezadeira recebeu, na terça-feira passada, a dona de casa Renata Villalba, de 49 anos, moradora de Vargem Pequena. A mulher estava acompanhada do marido, Aurélio Pantola, de 50, das filhas Joana, de 8, Juliana, de 31, e Ana Clara, de 24, além de Lucas, também de 24, e namorado da jovem. Era sua segunda visita.
—Passei por um processo de várias doenças quando, num sonho, alguém me falava que eu só iria melhorar se procurasse uma rezadeira em Vargem Grande. Foram cinco sonhos seguidos. Uma das minhas filhas que frequenta um centro de umbanda entrou em contato com uma pessoa que conhecia Dona Maria e a indicou. Eu acho que a reza tem o poder de curar, ainda mais vindo de uma pessoa iluminada —testemunha Renata.
Na Serrinha, em Madureira, quem mantém viva a tradição é Iraci Cardoso dos Santos Lino, a Tia Ira Rezadeira. Aos 87 anos, ela reza desde os 20, levando adiante o legado de Vovó Maria Joana (1902-1986), mãe espiritual de pessoas como a cantora Clara Nunes (1942-1983), além de ter sido líder comunitária, parteira, jongueira, rezadeira e uma das fundadoras do Império Serrano. Ela migrou de Valença, na região de origem escravagista do Vale do Café, para o Rio.
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—A missão da rezadeira é atender quando chega uma pessoa doente. Temos que estar sempre bem. Não temos tempo de ficar zangados porque o povo não deixa. Temos de ajudá-los porque hoje quase ninguém mais quer rezar. Você tem que estar com o coração bom e ter bem-estar para carregar sua cruz, que é pesada. Mas Deus não dá fardo a quem não pode carregar — diz a rezadeira, se referindo ao fato de que os atendimentos não têm dia nem hora para acontecer.
A assistente social Elaine Casemiro, filha de Tia Ira, conta que antigamente, no tempo de Vovó Maria Joana, o público que buscava as rezadeiras era formado por pessoas da própria comunidade, em sua maioria, que levavam os filhos para o primeiro banho, curar o umbigo e doenças. Muitos também iam em busca de reza para ter boa sorte na caminhada. Hoje esse perfil mudou um pouco. A procura, conforme diz, é de pessoas de vários bairros da cidade e de diferentes classes sociais, que agora também buscam conforto não só para os problemas de saúde e espirituais, mas querem também solução de questões materiais, profissionais e pessoais.
A reza de Tia Ira foi abordada pela mestra em relações étnico-raciais Karina Fátima Gonçalves de Souza em sua dissertação de mestrado apresentada em 2016, no Cefet, intitulada “Trajetórias e perspectivas de rezadeiras no subúrbio carioca”. Bisneta de rezadeira e acostumada a ser levada para rezar na infância, a autora disse que teve dificuldades de encontrar as mulheres que serviram de personagens em sua pesquisa.
—É uma tradição que está se perdendo, de fato. Isso se dá porque muitas pessoas da família não querem assumir essa responsabilidade de dar continuidade (com esse trabalho), e acredito que tenha também influência do crescimento das religiões neopentecostais, que faz com que muitas até evitem divulgar que fazem a prática da reza, por temerem o preconceito e o racismo religioso acerca dessa tradição —avalia a pesquisadora.
‘Imersões de benzimento’
É justamente para evitar que a tradição se perca que Emanuele de Faria Carvalho do Santos, de 45 anos, a Mãe Manu de Ogum, que comanda o Templo de Umbanda Tsara Paixão Cigana, em Guaratiba, na Zona Oeste, resolveu fazer o que ela chama de “despertar o dom” em novas rezadeiras. Na próxima sexta-feira, a partir das 16h, mais de 20 mulheres e homens preparados por ela vão participar de uma cerimônia de reconhecimento aos novos praticantes dessa tradição e também para atendimento ao público. Antes, foram submetidos a verdadeiras “imersões de benzimento”, nas quais aprenderam noções de uso das ervas e a importância de reconectar seus laços com a ancestralidade.
— O que faço é despertar o dom que essas pessoas já trazem com elas e às vezes não sabem. É também um trabalho de multiplicação — explica Mãe Manu.
Uma dessas pessoas que estão sendo preparadas no terreiro é Dinni Pereira Costa, de 32 anos, moradora de Sepetiba. Ela conta que é de família evangélica e nunca havia sido levada a uma rezadeira, até que em 2016 descobriu a umbanda.
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— Comecei a desenvolver a mediunidade e sentei para rezar sem saber. Senti uma conexão grande e as pessoas me diziam que se sentiam curadas. É muito bom poder pedir pelo outro mais do que para mim mesma — afirmou a nova rezadeira.
Marineia Barbosa, de 48 anos, moradora de Santa Cruz, é rezadeira há dois anos e já auxilia Mãe Manu. Ela diz que se sente como uma escolhida dos orixás para servir de canal de ajuda ao próximo.
— A rezadeira que a gente conhece é resultado do encontro de uma tradição portuguesa com a africana, fazendo com que no Rio de Janeiro isso seja muito forte. Mas a questão de fazer reza e livrar o corpo de doenças por meio de uma figura que tem esse poder é registrada desde a antiguidade, nas mais diversas culturas— aponta o historiador Luiz Antonio Simas, acrescentando que a tradição é maior onde a escravidão foi mais intensa, como no Norte Fluminense, no Vale do Paraíba, na Baixada Fluminense e na capital.
Fonte EXTRA