Milton Nascimento será enredo da Portela, ‘Estou vivendo um sonho’, disse o cantor

Com 82 anos ele diz ser impossível descrever seu sentimento

Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Aos 82 anos, o cantor, estrela do primeiro show da história do Sambódromo, volta a ser enredo de escola de samba; agora da Azul e Branco de Osvaldo Cruz, a maior campeã do carnaval carioca.

Milton Nascimento vive um sonho. Na semana que vem, quando a Portela entrar na Marquês de Sapucaí, já nas primeiras horas da Quarta-feira de Cinzas, fechando os três dias de desfile das escolas de samba do Grupo Especial, essa fantasia de Bituca — sonhada em uníssono pela imensa nação portelense — vai se tornar realidade. Com o enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol, uma homenagem a Milton Nascimento”, de André Rodrigues e Antônio Gonzaga, a centenária azul e branco de Osvaldo Cruz reverencia pela primeira vez uma personalidade em vida. E que vida! Aos 82 anos, o cantor, cuja voz há mais de seis décadas traduz como nenhuma outra emoções e lutas do povo brasileiro, se prepara para uma noite depois da qual nada será como antes.

— É impossível descrever o que estou sentindo. Este é um dos maiores momentos de toda a minha carreira. O que eu posso dizer é o seguinte: estou vivendo um sonho. Devo isso à Portela, que tem me tratado com muito amor, carinho e respeito — diz Milton.

Bituca recebeu O GLOBO em sua casa, no Itanhangá, na tarde da última terça-feira. Ficou em silêncio a maior parte do tempo. A pedido do filho e empresário Augusto Nascimento, a entrevista foi feita por e-mail. Sorridente, vestia a camisa azul com sóis, círculos e setas desenhados na cor branca que ganhou da escola e com a qual havia se apresentado, na semana anterior, na quadra da maior campeã do carnaval carioca. No lado esquerdo do peito, um broche dourado com a representação da águia portelense. Na cabeça, a indefectível boina, acessório que o acompanhou por quase toda a carreira.

Bituca com a boina, acessório que virou sua marcar registrada por muitos anos — Foto: Guito Moreto

Caminhando com passos curtos, sempre apoiado no filho, esperou na sala, pacientemente, pela sessão de fotos. No ambiente, vinis da própria carreira e dos Beatles, um piano e a tela da dupla de artistas OsGêmeos, cuja projeção fez parte do cenário da turnê “Clube da Esquina”, de 2019. Na sequência, vieram os shows da “Última Sessão de Música”, em 2022, planejada para ser a despedida de Milton dos palcos. Até a Portela chegar.

— Eu que até pouco tempo atrás pensava que dificilmente estaria num palco de novo, participei de dois shows só na semana passada. Um na quadra da Portela, junto com meu amigão Hamilton de Holanda e, no dia seguinte, no evento que a escola fez no Vivo Rio. E, nessas duas noites, o que a gente viveu foi uma coisa que até agora não consigo explicar — conta o cantor.

História na apoteose

Na semana que vem, Milton volta à cena. Desta vez naquele que é um dos maiores palcos a céu aberto do mundo: o Sambódromo. Não será a primeira vez. Em 1989, foi homenageado pela Unidos de Cabuçu com o enredo “Milton Nascimento, sou do mundo, sou de Minas Gerais”, do carnavalesco Beto Sol. Entre uma ou outra aparição nos camarotes da Sapucaí, foi destaque no desfile da Mangueira, em 2004, como Chico Rei, no enredo sobre a antiga Estrada Real que, muito antes da chegada dos trens, já ligava Minas ao Rio de Janeiro, ou seja, ao mar. Nos dois anos seguintes, repetiu a dose na verde e rosa: em 2005, no chão, ao lado do cantor Emílio Santiago, e em 2006, como destaque do sétimo carro da escola.

A relação de Milton Nascimento com o Sambódromo ultrapassa a fronteira do samba e pode ser classificada como histórica: coube ao cantor inaugurar a Praça da Apoteose como palco para shows fora do período momesco. Foi no dia 28 de abril de 1984, pouco mais de um mês depois dos primeiros desfiles realizados na recém-inaugurada Passarela do Samba.

Milton Nascimento faz o primeiro show da Praça da Apoteose, em 28/04/1984 — Foto: Foto Ana Carolina / Agência O Globo

Naquele sábado, como registrou a repórter Heloisa Daddario para O GLOBO, o cantor subiu ao palco acompanhado por orquestra com 32 músicos “vestidos a rigor” e o “conjunto composto” por Wagner Tiso, Robertinho Silva, Nico Assumpção e Ricardo Silveira. Foram 25 músicas. Na plateia, 70 mil vozes entoaram juntas clássicos como “Canção da América”, “Travessia”, “Caçador de mim”, “Para Lennon e McCartney”… Tudo entremeado por cânticos que pediam Diretas Já: o país clamava por democracia ainda em meio à moribunda ditadura militar. No bis, o êxtase com “Maria, Maria”, cuja melodia tem embalado e emocionado os ensaios da Portela e promete fazer vibrar de novo o Sambódromo mais de quatro décadas depois.

De outros carnavais

As primeiras lembranças de Bituca relacionadas ao carnaval são bem mais antigas. No livro “Travessia: a Vida de Milton Nascimento” (Record), a jornalista e pesquisadora Maria Dolores conta que o menino gostava de se fantasiar e observar os desfiles da Acadêmicos do Serrote e da Estudantes do Samba, as duas principais agremiações do carnaval da mineira Três Pontas, onde vivia com a família. A primeiríssima homenagem de uma escola de samba a Milton Nascimento, aliás, foi feita pela Estudantes. Dolores conta que “pela primeira vez ele desfilou, em lugar de honra, e acabou tomando gostinho pela escola”. Tempos depois, retribuiu o afago e compôs para a agremiação o samba “Reis e Rainhas do Maracatu”, em 1977. No ano seguinte, a canção entrou no disco “Clube da Esquina 2”.

Milton Nascimento: “É impossível descrever o que estou sentindo. Este é um dos maiores momentos de toda a minha carreira” — Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

— O carnaval faz parte da minha vida desde que eu tinha uns 7, 8 anos de idade, em Três Pontas. E a minha primeira escola foi a Estudantes do Samba, que desde muito cedo já acompanhava. Além disso, sempre estive envolvido, vestia fantasia e ia para a rua junto com eles. Era fascinado pelos sambas-enredo, inclusive sempre quis escrever um samba pra essa escola — lembra Milton. — Até que quando estávamos preparando o Clube 2, Nelson Ângelo, Novelli, Fran e eu fizemos “Reis e Rainhas do Maracatu”. Eu morava no edifício Fanny, num apartamento em que passei muitos anos, na Barra da Tijuca, e a música saiu de uma só vez. Minha relação com o carnaval vem de longe.

Milton não é o único que tem se emocionado com a homenagem. Para o filho, o momento tem lugar de honra na (imensa) história do cantor.

— Eu acho que é o mais alto nível de homenagem que um artista brasileiro pode receber. Ainda mais de uma escola tão grande quanto a Portela, num evento tão grande quanto o carnaval, que é um símbolo do Brasil, da brasilidade. E presenciar a emoção dele com esse momento tem sido muito especial — atesta Augusto Nascimento.

Perguntado sobre qual recado gostaria de dar à Portela, Milton não disfarça a gratidão:

— Muito obrigado pelo carinho, não apenas dos portelenses, mas também de todas as pessoas que estão torcendo por nós. Tenho vivido dias maravilhosos, e eu só tenho que agradecer por tanto amor. E estarei ao lado da Portela e dos portelenses para sempre!

O cantor Milton Nascimento, em 1977, em show na sua terra natal, a cidade de Três Pontas — Foto: Paulo Moreira

Quando o carnaval passar, Milton chega aos cinemas de todo o país com o documentário “Milton Bituca Nascimento”, dirigido por Flávia Moraes. O filme, que acompanha o artista em sua turnê de despedida, estreia dia 20 de março.

— Quando Bituca puxar o coro da Portela no refrão de Maria Maria, o carnaval vai chorar e cantar até a Avenida dobrar a esquina rumo ao Brasil profundo. Foi exatamente o que aconteceu quando filmávamos o documentário: seguÍamos Milton enquanto o mundo cantava com ele — aposta a cineasta Flavia Moraes.

O filme, com distribuição da Gullane +, além de acompanhar os show da “Última Sessão de Música”, traz mais de 40 entrevistas com personalidades como Gilberto Gil, Mano Brown, Djamila Ribeiro, Quincy Jones, Spike Lee e Paul Simon.

Milton Nascimento anuncia que aceitou convite da Portela para ser homenageado no carnaval de 2025 — Foto: Reprodução

Fonte O Globo

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